Um corpo desobediente

A revolta interna surge ao percebermos a repressão do sistema. A liberdade se constrói na desobediência ao autoritarismo e na valorização das resistências ancestrais

Gabriel Ribeiro

9/8/20249 min read

De qual princípio posso partir para dizer aquilo que a revolta de dentro de mim, quer expor? De qual pressuposto invoco tal proposição? Não passei pela chancela de uma academia para ao perceber a realidade a qual me encontro, fundamentar dizeres e reflexões. Todo dia me passa pela cabeça de quantos "reis" é preciso eliminar para que os súditos possam seguir adiante com tamanha dignidade que merecem. Observe, escrevo reis entre aspas. O rei autoritário não merece sossego o quanto existir. O rei pelo qual a matriz africana cultua, energética e espiritualmente, é a noção que eu concebo e admiro. Sabe por quê? O rei na matriz africana, está para servir a sua comunidade e não ser servido. Frantz Fanon me ajuda elucidar esta questão quando ele traça o incômodo que o europeu teve com a perspectiva diferente do africano com o mundo. Luiz Antônio Simas em suas obras tanto fala da pretensa hegemonia do colonizador que só queria que, através do kardecismo fosse possível se comunicar com os mortos. Simas expõe a capacidade sofisticada da matriz africana e dos saberes ameríndios, de estabelecer as suas comunicações com os mortos. O povo negro, os originários das mais diversas etnias, os imigrantes italianos (que trouxeram questões anarquistas), os camponeses, são gente de resistência. Emprego esta palavra no sentido de re-existir perante o fardo tóxico imposto violentamente pela carabina do colono. Quando falo que não possuo experiências na academia não significa que a desprezo aqueles que dedicam tempo e energia a pesquisarem e produzirem conhecimento de ponta. Como também não posso ignorar os tamanhos saberes de toda uma ancestralidade que também produziu ciência sofisticada. Estou relatando por uma via autodidata sem o intuito de estabelecer um tipo de "status", de autopromoção. A provocação é no sentido de dizer que não é porque estou fora de uma espaço acadêmico, deixarei de propor reflexões e de chamar a responsabilidade para si. Que possamos quebrar qualquer tipo de teto que limite as nossas possibilidades de pensar o mundo criticamente.

Enquanto anarquista, não temo de forma alguma as reações diante do tema da espiritualidade. Nem mesmo é a minha intenção de convencer algum tipo de anarquista niilista. Afinal de contas, a liberdade de pensar o mundo, passa por escavar a sua convicções e seguí-las investigando. Certa vez publiquei na rede social, algo mencionando os pontos complemetares entre alguns saberes afrobrasileiro e indígenas com determinados pilares anarquistas e um sujeito se incomodou, dizendo que "Orixá não é anarquia". Veja, nunca disse que um seja o outro. Quem pôde ler o meu livro "Anarquia e Espiritualidade: uma mensagem na garrafa", certamente observou o cuidado que tenho ao não proferir nenhum tipo de "colonização" com as palavras. Falo em pontes, acessos, diálogos, entre um e o outro. Olha, quando me reconheço como um anarquista, a primeira coisa que me vem, é a de ser honesto comigo mesmo para que o outro também a receba tal energia. E aqui não me cabe querer pontuar o que é o anarquismo historicamente, tem gente mais preparada para isso. Entretanto a partir de um recorte que traço de alguns pilares anarquistas, o diálogo com outras correntes de pensamento, é um fator extremamente viável e plausível para que a ruptura radical aconteça diante das estruturas de poder.

Trazendo um pouco da Comuna de Paris, ela não se deu meramente só por esforços anarquistas; estes é evidente, tiveram um planejamento e uma premissa de rompimento total com a centralizações por parte dos republicanos e dos prussianos (que queriam invadir a França). Antes desse marco importantíssimo para os objetivos anarquistas e libertários, digamos assim, houve um grande processo de assembleias, encontros internacionais entre trabalhadores. Ou seja, ocorreu um amplo e tenso debate sobre os rumos da classe mais oprimida ali da europa. E por que trago esta questão aqui? Pois compreendo que diante desse avanço "neocolonial-fascista", com aumento de sua brutalidade, tornando assim a realidade bem complicada para as forças de resistência, acredito que um caminho possível - não fácil, mas com possibilidades - seja o de aglutinar algumas das correntes teóricas e práticas que estejam alinhadas por uma percepção de saturação do modelo de democracia burguesa representativa (pautada pelo capital). Eu estou em busca disso, na prática. Em hipótese alguma devemos romantizar e considerar que as relações e articulações no próprio campo dito progressista ou nos "espaços de resistência", seja um movimento fácil.

Não deixariamos de nos relacionar com o internacionalismo libertário, mas a mim vale preservar uma premissa anarquista de compreender as características locais do espaço-tempo em que estamos. Não posso remar somente a favor da liberdade daqueles que estejam em um centro urbano, até porque nesse mesmo espaço urbanizado, se encontram outros tantos grupos oprimidos e marginalizados assim como nós anarquistas. Deixa para os partidos de esquerda - pelo menos do ponto de vista da cúpula - sabotar ou enfraquecer as lutas indígenas, de quilombolas ou de algum grupo historicamente criminalizado pelo discurso "oficial". Posso lá na frente, rever alguma posição minha, não temo quanto a autoanálise de um suposto equívoco. Mas dentro do que observo no macro e que respinga no micro, creio que esta proposição em aglutinar forças de resistências que já não mais, creem na democracia burguesa, possa ser uma tática de enfrentamento importante contra o regime autoritário que ainda impera na sociedade.

Os anarquistas italianos trouxeram, em termos básicos, escritos e perspectivas anarquistas. A Greve de 1917 em São Paulo foi fruto do resultado de uma grande mobilização entre trabalhadores. A propaganda anarquista na época teve sua parcela de contribuição porque suas pautas eram condizentes com a realidade ali da classe operária. E hoje, em pleno século XXI, na minha opnião, existem muitos pontos semelhantes e em comum, entre os mais variados grupos oprimidos no Brasil, por exemplo. Olhemos para os bairros das ditas periferias, a brutal violência policial e miliciana que acontece por lá, com corpos negros sendo alvos das pólvoras armamentistas. Se tenho a preocupação em não querer "colonizar" nenhuma luta contrahegemônica, também não passa por minha cabeça, deixarmos de lado valores e premissas consagradas daquilo que forjou os anarquismos.

Estou passando ainda por uma fase importante em minha vida, por conta de uma radical mudança, de uma região para a outra. O processo de adaptação está fluindo. Onde estou tem muitos corpos de militância petista. Com esses não quero conversa. Não por que os considero incapazes de pensar a cidade, o mundo. Mas porque as suas escolhas estão bem enraizadas em terreno bem inóspito. Aliás, a esquerda partidária, prefere conversar com "neofascistas" com perfume de trabalhador do que proporcionar espaços de diálogo para os anarquistas apresentarem as suas propostas que visam a transformação social. Reforma já vimos que não ajuda muito.

Não sei até que ponto algumas dessas forças também estariam interessadas em conversar com os anarquistas. Por outro lado existem coletivos, organizações, anarquistas, remando lado a lado com gente da terra, do quilombo. Anarquistas em meio aos assentamentos do MST, por exemplo.

Escrevo este artigo com a lágrima de emoção que pede para cair em meu rosto, de ver a estrutura de poder (colonial) invadindo e roubando a dignidade daqueles que nasceram na mesma terra do que eu. Isso nada tem de nacionalismo, falo daqueles que sofreram com chibatadas e com águas contaminadas de mercúrio. Gente em situação de rua que não suportou a hipocrisia dessa sociedade violenta e hostil aos mais sensíveis. Eduardo Galeano cita que os "vencedores" são os que arrancaram a glândula do próprio corpo para serem cúmplice dessa tragédia social causadas, principalmente, por instituições do Estado e acordos políticos com as grandes empresas privadas.

Nascemos já diante de um ambiente muito repressor, que deseduca, desistimula as nossas subjetividades. Os nossos pais, as nossas mães, seja quem for da família ou de uma vizinhança qualquer, vão atuando com o peso do "super ego" (observado por Freud), e cumprindo papel de sentinelas do "sistema". A figura do patriarca, enclausurada, em nossa sociedade, vai constituindo-se em obediências ambulantes, configura uma marca e um reaproveitamento daquilo que muito teóricos chamaram de "sociedade de controle". Mecanismos e dispositivos são criados para domesticar os diversos corpos existentes pelas cidades. Se domestica não para gerar a tão clamada "paz", mas para descaracterizar, desmobilizar, "des-potencilizar", as relações sociais inconformadas com tanto sofrimento diário. Comunidades, coletivos, grupos culturais, estão atentos a esta domesticação, ressignificando espaços e sentidos que foram impostos pelo "poder público" e com o apoio dos mais ricos. Por esta razão é que cito com profundo respeito os saberes sofisticados daqueles que riscaram as suas respectivas existências sob a linha tênue da desobediência. Os militares há bastante tempo tentam desfilar uma moralidade "civilizatória" que na realidade não se sustenta. De 1964 a 1985 (período da ditadura) houve uma expansão (mais ainda) de setores de infraestrutura, de empresas multinacionais, sem transparência alguma. Sem contar nas torturas contra os militantes de esquerda, no geral.

A esfera autoritária, de qualquer natureza, não tolera o questionamento, muito menos a diversidade do pensar a vida, do fazer a vida. A domesticação colonial opera em muitas frentes, desde da expropriação de terras, até o aniquilamento simbólico e físico daqueles que remam para uma direção contrária ao do acúmulo de bens materias e de (tentativa) exercício de poder.

Como falei anteriormente, felizmente existem correntes que promovem espaços de resistência, diante de uma luta insana para sobreviver e (re) existir enquanto um corpo criativo. Simas (o historiador), demonstra o quanto a gramática do tambor se relaciona com um saber sofisticado que se autopreserva da tirania da figura do Estado - aquele ente sempre de olho, querendo devorar um corpo rebelde, desobediente. A capeira criou os seus conceitos através de muita repressão colonial. Os povos indígenas sofrem até hoje porque estão a preservar os seus saberes e culturas.

Como estamos lidando com os nossos corpos? Estamos deixando a mercê de uma jornada de trabalho que degrada em demasia a saúde do trabalhador. Falar em trabalho, a precarização do mesmo serve como a tônica para controlar tais corpos que estão sujeitos a se indignarem com a escassez, de saneamento básico, alimentação, sossego, e tantas outras dignidades. A extrema-direita vem encurralando tudo o que lhe for antagônico. Um de seus líderes fala em "livros sem textos", para serem fornecidos nas escolas. Aliás, que escola nós queremos para as nossas crianças? Uma conteúdista, que só despeja um monte de conhecimentos técnicos? Estão querendo envenenar a pedagogia do lúdico, para implementar a cultura engessada da obediência. Os canalhas reacionários querem que a orgia, as festas "putaria" só sejam realizadas por eles. À massa, o fardo do trabalho braças, o banco duro da igreja neopentecostal.

Desobedecer é um recurso pelo qual todo crítico ao capitalismo e a qualquer tipo de regime autoritário ou aristocrata, pode cuidar com muito carinho e responsabilidade. Sim, ser responsável pois de um lado tem um Estado sendo o escudo das oligarquias. A mídia corporativa empobrece o debate na televisão. A populção vai tendo o seu psíquico afetado por tanta narrativa desonesta. As poucas frentes de resistência, dentro do que observo, não estão sendo o suficiente para frear o avanço de uma gente que odeia a vida. Portanto, companheiros e companheiras, anarquistas, libertários e simpatizantes, concluo com este alerta (antifa!) de que uma das estratégia de todo conglomerado autoritário é separar a sociedade e estímular a competição entre si. Para muitos que estão, no mesmo perrengue que a gente, obedecer significa assegurar o coração batendo. Mas do que adiante ter o coração batendo se a coragem foi embora? Viver no vazio é o maior problema para a nossa existência. No esvaziamento existencial vem a distorção da realidade. E é da realidade, que conseguimos agir para que as nosas vidam possam melhorar. Por isso que quando falo em "desobedecer com responsabilidade", é pensar tal movimento, respeitando a subjetividade do corpo, mas sem perder de vista o norte da objetividade. O tempo não é linear. Porém o tempo é movimento, que percorre em nossas veias. Na solidariedade o tempo é o que estende as mãos para o que está mais vulnerável.

Volto a dizer, não estou sugerindo que deixemos as pautas anarquistas "de lado", apenas propondo que possamos olhar, observar o tamanho do problema social que estas correntes "neocoloniais-fascistas" estão promovendo, através de muito derramamento de sangue, de muita saúde delibitada por conta do trabalho. Enquanto anarquista penso que não há uma fórmula pronta para se colocar à mesa. Tanto podemos aprender com a Comuna de Paris, com a Greve de 17, quanto podemos aglutinar forças e somar com "gente da terra", com os quilombolas, por exemplo. As ocupações por moradia nas grandes cidades já possuem esse caráter mais confluente, digamos assim, como bem fala o autor Nego Bispo.

Aglutinar, bagunçar, para se organizar, se manifestar, se misturar, para recriar os espaços, a vida, são noções potentes para enfrentarmos o peso de um neocolonialismo que vem babando por aí.

Gabriel Ribeiro
À Margem