Resenha do livro "Maracanã: quando a cidade era terreiro" - Luiz Antonio Simas
Resenha sobre "Maracanã: quando a cidade era terreiro", de Luiz Antonio Simas, que conecta futebol, macumba e saberes populares à história e transformações do Maracanã
Gabriel Ribeiro
9/8/20244 min read
Inicio esta resenha dizendo logo "de cara" que "Maracanã: quando a cidade era terreiro" é um golaço "de placa" feito por Luiz Antonio Simas, Historiador e Professor, que se dedica há bastante tempo a pensar a cidade do Rio de Janeiro por uma ótica da macumba, do samba, do futebol e dos saberes populares.
Como carinhosamente chamo este livro - "terreiro de mão" - nesta minha impressão, serei um torcedor típico das arquibancadas - vendo o craque de bola em campo - trazendo relatos, pesquisas, histórias e constatações, do contexto histórico que envolve o "eterno gigante" Maraca (só para os íntimos).
Simas não só desfila a sua capacidade intelectual a cerca do processo histórico do Maracanã, como também evidencia toda a sua ligação afetiva, social, cultural e de torcedor, diante daquele que já foi o maior do mundo - Estádio Jornalista Mário Filho - nome em homenagem a um dos entusiastas da construção do estádio de futebol. Aliás, quando Simas expõe os diversos projetos para que o Maracanã fosse erguido - evidencia-se, as contradições e a falta de transparência dos projetos e documentos.
O Estado e os militares - passando por jornalistas, burguesia, políticos e sociólogos - viram na construção do estádio, uma possibilidade política de forjar uma identidade social - a de um povo miscigenado, cordial e amante do futebol.
Essa projeção foi subvertida pela capacidade da massa trabalhadora (em especial) de reinventar o espaço precarizado em magia e ludicidade.
Em um país forjado pela brutal violência contra os povos originários e os corpos escravizados dos negros; produziu o estádio mais importante para a cidade do Rio de Janeiro (e do Brasil - naquela época), com as rachaduras das contradições sociais visíveis.
O discurso romântico da planta do estádio calculava a presença de todas as classes sociais - e de fato, comprovou-se a ideia inicial. Entretanto, como característica típica do projeto de país escravagista - marcas da desigualdade ficaram expostas.
Na geral - o local com a pior visibilidade para se ver o campo; na arquibancada, destinada a uma classe média, e nas tribunas e cadeiras cativas, para os mais endinheirados. No setor mais precário era onde se via o surgimento dos mais criativos personagens. O povo que mais sofria com as condições precárias, era o que mais buscava ritualizar aquele espaço no qual não se tinha conforto algum - sem a possibilidade de assistir aos jogos de forma digna.
O que acontecia no cotidiano da massa trabalhadora, o Estado encontrou uma maneira de aplicar no Estádio Jornalista Mário Filho - separando as classes. Mas lá dentro do gigante de concreto quando a torcida adentrava pelas rampas de acesso, um novo sentido era dado para aquele espaço - construído e planejado por quem concebe a vida sem considerar o lucro e os privilégios.
Para quem frequentou o Maracanã, assim como eu - meu primeiro jogo foi um Flamengo x Corinthians, em 1993, salvo engano, gols de Renato Gaúcho e Viola - sabe que o velho Maraca foi muito mais do que um estádio de futebol. O cheiro insuportável das urinas nas paredes, a desconfortável arquibancada acimentada, as porradarias das torcidas, nada disso impediu que os torcedores ritualizassem a vida dentro de um espaço projetado por uma lógica da desigualdade.
O velho Maracanã que morreu permitia que os torcedores buscassem novos modos de sociabilidades, superando o cotidiano massante - e mesmo com toda a contradição inerente - machismo, mau odor, falta de conforto - os corpos da população incorporavam a entidade torcedor, potencializando e dando novos sentidos para a vida; sacralizando partidas de futebol, celebrando afetos no coletivo, na manifestação da torcida.
O novo Maracanã arenizou-se, transformou o torcedor em consumidor. Limitou mais ainda os artefatos que ajudaram nas festas das torcidas. Elitizou-se e higienizou-se, através do bolso, os perfis dos frequentadores. Se antes a grande maioria deixava o corpo em transe para viver a magia dos afetos, atualmente a experiência é pouco vivida. A foto (na hora do gol) para o like na rede social toma a capacidade infinita do corpo de se reconhecer no axé de um espaço (público) repleto de diversidades - hoje o Maraca está nas mãos da iniciativa privada.
Eu sou um dos torcedores que se afastou do velho Maracanã, ou melhor dizendo, ele foi retirado de mim e de meus semelhantes. Um "carioca" como eu, corintiano, não posso mais ritualizar e vivenciar o espaço e sentir a magia que só o futebol proporciona. Uma noção de pertencimento foi arrancada à força do povão trabalhador. Ficar no meio dos Gaviões da Fiel, ver um fla-flu lotado, estar no jogo em que o Romário poderia ter feito o milésimo gol, contra o Botafogo, são memórias que nunca deixarei apagar em mim.
Assim como acontece com diversos terreiros de Umbanda e de Candomblé, o Maracanã foi violentado. A matriz africana é perseguida por conta de um projeto teocrático terrorista que tem pavor do que é misterioso, diverso, batucado, comunitário e ritualizado. O velho Maracanã foi vítima da especulação imobiliária, de políticos indecentes, das empreiteras e de um projeto de gentrificação - que se debruçou responsabilizando a "dona Fifa".
O Maracanã "raiz" sofreu o que uma cidade, na mão de um Estado decadente, com ex-governadores presos, por conta de um grande esquema de corrupção e propina, vem sofrendo, sobretudo com a lógica de uma cidade dos megas eventos - pelo qual mais uma vez os mais pobres (economicamente) são expulsos dos lugares.
Macumba e futebol, duas formas que o nosso povo e a diáspora, conceberam de ver a vida, riscando na ginga da entidade do malandro, do cacboclo, das sabedorias de preto velho e nos dribles de Garrincha e no torcedor que no dia de folga reconheceu-se fora da realidade para celebrar a vida.
Muito obrigado Luiz Antonio Simas, por disponibilizar tamanha obra, remexendo em afetos esquecidos - pela força do tempo e do aniquilamento deliberado do espírito colonizador. Maracanã: quando a cidade era terreiro é um convite poético e documental para se pensar a cidade do Rio de Janeiro e todo o território das "brasilidades" como um espaço de disputas incessantes entre os que querem só o lucro e aqueles que querem encantar a vida, reinventando o precário e a violência do Estado em sentidos potentes para o corpo.
Futebol e macumba, a bola e Exu. Do jogo (inglês) enfadonho para a arte da dança e do drible. Do Kardecismo para a comunicação com os mortos das religiões afro-brasileira-indígenas.
Por meus ancestrais e por todas e todos que ajudaram a pensar uma sociedade "de fato" mais democrática, comigo, a bola e a gira e xirê, sempre haverão de rolar e batucar.
Gabriel Ribeiro
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