O espírito de uma classe média “do sul” que aterra cada vez mais a Parahyba
O espírito de uma classe média “do sul” que aterra cada vez mais a Parahyba. Depois de me mudar para João Pessoa-PB há um ano e meio, percebo que muitas pessoas estão vindo de outras regiões em busca de uma vida melhor. Essa movimentação traz à tona um discurso colonial que esquece a riqueza cultural local. Enquanto a especulação imobiliária avança, a identidade dos paraibanos corre o risco de se perder. É fundamental valorizar as tradições locais e construir uma convivência que respeite a cultura que faz de João Pessoa um lugar tão especial.
Gabriel Ribeiro
9/28/20249 min read
De antemão, para quem vem “passear” pela cidade de João Pessoa-PB (antiga Parahyba), e estiver minimamente atento, logo perceberá uma enxurrada de novos moradores do sul e do sudeste e de algumas outras regiões do Brasil, chegando na capital pessoense. Ressalto que esse texto-desabafo, não é nenhum apêndice acadêmico. É um relato de uma pessoa – do sudeste, diga-se de passagem – e que há cerca de 1 ano e meio – vem observando como a maioria dessa classe média “de fora” vem se relacionando com essa cidade que outrora era considerada “rio de difícil navegação”, por conta das embarcações portuguesas que não conseguiam navegar pela águas internas da região citada.
Essa chegada em massa de uma classe média vindo (pricipalmente) de cidades como São Paulo, Brasília e algumas do Sul do país, carrega em suas respectivas bagagens, a intenção de melhorar a qualidade vida que nas cidades – economicamente, mais ricas desse país – já desconhecem por um bom tempo. Para os burocratas de plantão, essa condição é legítima, não teria nada de errado, não é? A questão que vou propor aqui se trata de uma crítica na forma com que uma grande parcela dessa classe média “de fora” está fazendo com as culturas locais. Certa vez uma brasiliense que está morando aqui disse numa roda de conversa que seria “legal” se os “paraibanos” pudessem sair da cidade para deixar ela para o “povo” de fora. Essa moça recalcada com a vida teve a indecência de pronunciar esse bafo colonial, mas tantos outros paulistas, gaúchos, dentre outros, manifestam suas reais intenções de um jeito diferente, embora tão escrachado quanto. Os bairros considerados nobres – principalmente os da orla – Bessa e Manaíra, são os mais requisitados por essa turma que quer ter o privilégio de morar perto da praia e obter um custo-benefício e viver longe da violência urbana “do sul”. Isso em um primeiro instante pode soar como uma força natural do instinto de um corpo que se encontra saturado em seu cotidiano massante (nas grandes cidades do Sul e do Sudeste, por exemplo), mas na prática há embutido um aspecto de desintegração extrema com as riquezas culturais locais que reafirmam as suas belezas e histórias de lutas e de superação. A lógica é quase a mesma de uma colonização. Quase todos os dias estou sempre a conversar com paraibanos, com gente que vem percebendo essa modificação da cidade numa cidade “globalizada”. A sensação de muitos é que a cidade está perdendo a sua identidade em muitos pontos dela, principalmente nesses bairros da orla e nas adjacências.
A especulação imobiliária que vem arranhando os céus de João Pessoa-PB, traduz bastante um dos objetos de minha crítica a essa covarde postura de uma classe média que está pouco se importanto em estabelecer uma relação minimamente ética, íntegra, com as culturas locais. Não adianta chegar somente em um feirinha e comprar um artesanato local (no caso, um chaveiro de chapéu de cangaço), comer uma comida típica e escutar um xote na beira da praia, e depois desprezar boa parte da população paraibana.
Antes de trazer mais dados que obtive diante de um camarada que trabalha com Educação, aqui na Parahyba, preciso dizer por que vim morar nessa cidade – Terras Indígenas):
No estado que se destaca pela resistência contra os colonizadores, existem quatro povos indígenas: os Potiguara, os Tabajara, os Cariris e os Tarairiús. No total, estima-se que 25 mil indígenas residam na Paraíba, aldeados ou não, segundo o antropólogo e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Estevão Palitot. Fonte: Portal A União
Prosseguindo, um dos motivos que me fizeram vir para essas terras paraibanas, não foi necessariamente nesse tom que citei referente à classe média “de fora”, mas de fugir de uma hostilidade muito próxima que assolava a mim e a minha família, no lugar onde vivíamos anteriormente. Volto a dizer, a premissa de mudança para querer viver “de boa” na orla, com um custo inferior ao de São Paulo-SP, é um direito de cada um, entretanto, quando resolvemos que queríamos morar em João Pessoa-PB, começamos a pesquisar e de fato, um amigo nosso, artesão, anarcociclista, em situação de rua, que morava por aqui na época de nossa decisão, nos orientou e deu algumas coordenadas sobre o que conseguia ler da cidade.
Veja só, eu, com esse pensamento que estou oferecendo nesta crítica, não significa que estou isento de qualquer vício xenofóbico. Desde pequeno sendo educado pelo Rio de Janeiro, o meu imaginário fora invadido por termos pejorativos a respeito da população nordestina. Penso que talvez seja como no machismo, no racismo e em qualquer outra fobia que absorvemos desde muito pequeno e que em dada circunstância na vida adulta, acabamos reproduzindo, e que mesmo que tenhamos consciência do projeto político-socio-cultural, por detrás de todo preconceito, a gente sabe que é um exercício diário retirar todas essas impregnações introduzidas em nosso modo de ver as coisas. Portanto, não faço essa crítica montado em um telhado de vidro. Assumo a minha responsabilidade de reparar – em mim, também – o quão os discursos ditos oficiais forjaram um tipo de Brasil muito centralizado em Rio de Janeiro e São Paulo, aliás, gerando assim diversos ataques xenofóbicos aos nordestinos.
Aproveitando que falei das duas cidades mais “ricas” do país, um dado histórico relevante para se pensar as mazelas que as políticas institucionais deixaram na Parahyba, em Pernambuco e nas demais regiões próximas, se dá quando as elites econômicas cariocas e paulistas, se incomodam com a ascensão e diversidade que as terras fértis aqui da região da Paraíba, estavam prosperando e ao mesmo tempo, despertando os olhares gananciosos dos paulistas e cariocas que impuseram uma articulação para trazer a monocultura do café e da cana-de-açúcar para a região nordestina, com o intuito de degradar o solo e prejudicar toda a fartura da agricultura local. Esse é um dos aspectos dentre tantos outros que fizeram com que a desigualdade aqui na Paraíba ou a “falta de estrutura” fosse, digamos, mas evidente do que por lado sul do país. Mesmo com uma estratégia política de uma elite sudestina em desestabilizar a Parahyba e sua região, os ventos aqui sempre tiveram soprando na direção do surgimento de Chico César, Ariano Suassuna, Cátia França, Totonho, Jackson do Pandeiro, Geraldo Vandré, José Lins do Rego, Lampião e o cangaço, as lutas indígenas e suas contribuições medicinal e culturais, dentre outras maravilhas.
Recentemente encontrei-me com um camarada que trabalha com Educação infantil aqui na Parahyba, e iniciamos uma conversa debaixo de um pé enorme de Jambo (uma linda árvore por sinal) sobre a culinária local. Essa pessoa foi falando do cuscuz banhado ao óleo de coco, do Mugunzá e de outros pratos típicos da região. Ela prossegue falando que o Mercado Central (público) da cidade de João Pessoa, foi um grande espaço de abastecimento para a população, com as suas ricas variedades de alimentos e artesanatos, mas que o mesmo fora perdendo espaço para os mercados privados de alguns bairros, principalmente os da orla pessoense e, que se alastra pro restante da cidade. Portanto, boa parte da população começou a frenquentar mais os “hortifruti” da vida e se desintegrar com pontos culturais e históricos da cidade.
Nessa mesma conversa com o camarada paraibano (vou preservar o seu nome), fiz algumas observações – já citadas nesse artigo – e que pude ainda complementar dizendo que para essa classe média, o que importa não é estar numa região com esses atributos que foram mencionados acima nesse texto, e sim meramente o fato dessa turma sudestina, poder morar de frente ou perto da praia por um custo muito mais acessível do que qualquer cidade litorânea do Rio, de São Paulo e até mesmo das saturadas Fortaleza e Recife, por exemplo. Talvez eu tenha chegado no objeto de análise que pretendo nessa crítica, ou pelo menos, um dos principais, que é o problema que isso pode gerar a curto-médio prazo. Falo da falta de interesse por parte dessa classe média em estabelecer uma relação minimamente ética com o restante da cidade para além orla – Bessa, Manaíra, Tambaú e Cabo Branco. Aqui em João Pessoa – nome da cidade em homenagem ao político aliado a Getúlio Vargas, e que recebe crítica de muitos paraibanos por conta de sua personificação em detrimento do nome Parahyba) – existem movimentos de resistência que vem buscando reafirmar essa banda de cá como sendo “Terras Indígenas” e que conseguiu resistir ao lobby das construtoras que queriam derrubar uma lei local que protege a luz natural das praias e sua preservação de espécies marítimas, como o da tartaruga, fazendo com que seja vetada a construção de prédios grandes na rua da orla.
Quando cheguei na cidade, em Novembro de 2022, uma das coisas que me chamaram atenção foi a quantidade de artesãos que vendiam as suas artes pelas orlas de Tambaú e Cabo Branco. Sem querer romantizar as condições ali expostas pelos “miçangueiros”, dentro da referência que tinha – no Rio de Janeiro, é inconcebível ter tanta gente vendendo os seus artesanatos pelos “calçadão” das praias. Portanto, ainda sim, considerava, pelo menos, uma forma da sociedade (generalizando) se relacionar com essa galera que batalha diariamente para ter as coisas. Mesmo sabendo que ali o maior público vinha do turismo, mas sentia que o “poder” público “dava um sinal” ao permitir que os comerciantes ficassem com os seus “shopping de chão” expostos na calçada. De Novembro de 2022 para os dias atuais (escrevo dia 24 de Abril de 2024), agentes do Estado começaram a intensificar aquilo que chamam de fiscalização, parte dos moradores também iniciaram um coro para que os “miçanngueiros” não ficassem mais na região. Resumindo: conseguiram expulsar quase todos os artesãos das orlas. A quem interessa tornar o lugar vazio de diversidade? Essa expulsão dos “miçangueiros” tem a ver com o lobby das empreiteras e construtoras que querem subir prédios enormes por toda a orla?
Quando um “povo”, um grupo, seja o que for, migra, se desloca, para uma outra região, digamos, completamente diferente da anterior, é natural que as referências de vida o sigam. A história de muitas diásporas comprovam tal afirmação. E no contexto ao qual me refiro, possui implicações obscuras, também. Explico. Nessa “invasão em massa” não se muda de cidade para uma outra com o intuito de agregar suas referências e se integrar com as características locais. A lógica majoritária nesse sentido é: a minha visão de mundo sempre há de prevalecer em qualquer lugar. É como se fosse uma extensão dessa energia colonial que ainda persiste em terras pindorâmicas (hoje Brasil).
A verticalização nos bairros da orla e região, podem servir como uma bússola para pensarmos esse contexto que a Parahyba está passando. É um projeto neoliberal que invade qualquer cidade que se pretende crescer às custas da lógica capitalista. Aqui em João Pessoa, há relatos de que a comunidade “do sul” vai construindo laços entre si, casando entre si, como sendo algo pertencente a um grande projeto socio-político chamado capitalismo. Muito mais do que a relação entre trabalhadores e donos do meio de produção, como o velho Marx diagnosticou, é nas entranhas das relações sociais que podemos também perceber as vontades dominantes do capital e de um modo de vida padronizado. Esse troço é completamente hostil às diversidades, sobretudo àquelas que historicamente reivindicam seus direitos de existir, que lutam contra o apagamento histórico que a colonização sempre tentou efetivar em nossa sociedade.
As tecnologias são importantes como assinalou Murray Bookchin, em Anarquismo, Crítica e Autocrítica…, pela editora Hedra, quando diz que as “esquerdas” não podem abandonar o debate sobre as tecnologias, visando assim, pensar as melhorias de condições para a classe trabalhadora, por exemplo. Portanto, acredito que tanto João Pessoa, como qualquer outra cidade que se pretende crescer economicamente, precisa evidentemente pensar sua infraestrutura, etc., com mais participção daqueles que nesa habitam. Trazendo para esta roda de conversa, citemos o Mestre Joelson e o saudoso Nêgo Bispo, que tanto afirmam a vida dos povos ribeirinhos, quilombolas, indígenas, camponeses, para além da noção de mercadorias que o homem branco impôs ao longo da fundação desse Estado-Nação chamado de Brasil. Ecoa em minha cabeça agora, as vozes de Ailton Krenak e Davi Kopenawa, alertando para o abuso e violência que essa turma do garimpo, das grandes cidades, vem fazendo com outros modos de vida – mais comunitário, íntegro com a natureza. São tantas riquezas que “os nossos” vem produzindo, da medicina, passando pela arte até a área da cultura, e me parece que, nesse objeto de proposição que invoco nesse artigo, existem assossiações que possamos pensar, caminhar, para que os nossos sonhos, as nossas perspectivas de vida, não sejam aterradas por concretos da indústria da construção civil nem por nenhuma outra oligarquia. A classe média do sul e do sudeste, na sua maioria, que chega em João Pessoa, são sentinelas a serviço desse modo de vida autoritário.
Eu, ainda tenho muito que conhecer nessa terra Parahyba, tem um processo de adaptação, e respeitarei, entretanto, a verdade que me surgir no reflexo de minha mente, irei lidar com muita coragem e responsabilidade. Deixar as verdades rasgarem as pequenas tiranias de dentro da gente, como por exemplo no que diz respeito as fronteiras, tão turbinadas e aprimoradas pelos Estados, que só usaram para fins políticos e econômicos. Durante esse período em que estou por aqui, o sotaque paraibano já se faz presente em minha comunicação-corpo. É belo sentir a mudança que ocorre na gente nesse sentido. Isso que falo é um grão de areia perto da responsabilidade e dos afetos que todo “sudestino” precisa ter ao chegar em Terras indígenas da Parahyba!
Aos que se identificam com esse texto, escapem para dentro de sim. Mergulhem na conexão com suas espiritualidades. É uma fuga para se preencher de si, se proteger das imposições coloniais. É escapar para o mistério e se conectar com os semelhantes, os parentes.
Saudações libertárias
Gabriel Ribeiro
À Margem
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Reflexões anarquistas sobre a sociedade descentralizada.
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