Impressões: “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak
Impressões: “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak – Editora: Companhia das Letras - A resenha reflete sobre as ideias de Ailton Krenak, que critica o consumismo e a destruição ambiental, propondo uma reconexão com a Terra e a valorização dos modos de vida indígenas
Gabriel Ribeiro
9/9/20247 min read
Quando a gente perde o sentido daquilo que está ao nosso redor, qualquer tipo de atrocidade é possível acontecer. Se nada vale para os sentidos, nenhum modo de vida é considerado possível para aquele que só consegue perceber a vida pela ótica do ter, do consumir. Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, é uma provocação profunda pela vida da terra que Ailton Krenak faz. O indígena, ambientalista e filósofo vem há bastante tempo trabalhando e lutando para que os modos de vida indígenas sejas respeitados pelo homem branco. Krenak sabe que o mundo irá continuar existindo, independente de qualquer desmatamento ou violência contra os rios, as árvores e as espécies de vida do nosso planeta terra. A questão que Ailton Krenak coloca a respeito do “fim do mundo” é com relação às vidas de qualquer natureza. Adiar as mortes do dos rios, dos solos, das árvores, das espécies animais, das culturas indígenas, ribeirinhas, dos quilombolas, daqueles que concebem a vida humana e os componentes naturais do meio ambiente, a mesma coisa, ou seja, tudo tem vida.
Em tempos de violência em grande escala, envenenamento de rios por conta das operações de garimpeiros, desmatamento do solo para pasto de gado e monocultura de grãos, falar o simples com tamanha sofisticação, é um “chamado” que não só Krenak está fazendo, mas toda uma ancestralidade da mata, das florestas, das terras, dos territórios tradicionais, de tudo aquilo que está pela vida diversa. Krenak exibe um questionamento extremamente pertinente, que nada mais é do que a Mãe Terra clamando para que o sangue pare ser jorrado. Conversar com as plantas, conhecer seus benefícios medicinais, conceber que tal integração entre todas as vidas existentes nesse planeta, é algo que a materialidade, a cultura cartesiana do europeu ainda não compreendeu. E que muitos na sociedade “moderna” ainda não se deram conta que, a terra, toda essa nossa existência, tem sentido. Krenak diz:
neste organismo vivo que é a Terra, que em algumas culturas continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos, não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas, mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência. Em diferentes locais do mundo, nos afastamos de uma maneira tão radical dos lugares de origem que o trânsito dos povos nem é percebido. Atravessamos continentes como se estivéssemos indo ali, ao lado. Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para o outro, que as comodidades tornaram fácil a nossa movimentação pelo planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido no nosso deslocamento. (pág. 42-43)
Ailton Krenak
Para quem só consegue perceber a vida pela via dos bens materiais, certamente vai ignorar as profundezas que o cerca. Falar para quem reproduz o discurso do colonizador que conversar com uma árvore o torna a gente mais íntegro com esses aspectos naturais, é como falar para um corpo insosso. Diante desse genocídio provocado por uma violenta colonizada (licença pela redundância) dos europeus em terras pindorâmicas, fica evidente que a fundação do que se convencionou a chamar de "Brasil", é resultado de um projeto político de território, de costumes, de conceber o “fazer” a vida. Se estas atrocidades acontecem desde mais de 500 anos, passando por escravização dos povos indígenas e corpos negros africanos, por um império distribuidor de títulos de propriedades, por uma República, por uma ditadura-civil-empresarial-militar e uma democracia liberal burguesa, é um terrível sinal de que este projeto de país, de Estado, “deu muito certo”.
Não há como fazer essa leitura de Ideias Para Adiar o Fim do Mundo sem tecer algumas conexões com o grande objeto de análise desse livro, e dentro disso, chamo para este texto, o Historiador e Professor, Luiz Antonio Simas, que produziu uma vasta obra sobre esse tipo de Brasil-colônia que visa não só domesticar os corpos nativos para que os mesmos sirvam aos seus interesses mercadológicos, mas também para apagar toda uma gama simbólica, cultural e histórica, dos povos indígenas e dos corpos negros escravizados pelos europeus. Portanto, é "triste" (mas complacente com os objetivos dos colonos) tal afirmação que Simas menciona em sua fala sobre este espaço geográfico em que estamos, que este projeto extrativista “deu certo”, pois foi sendo constituído para impor só um modo de vida – o corpo pensado para suportar o trabalho pesado. Krenak também expõe essa dura realidade e essa perversa maneira de estar aqui por parte do homem branco às custas do sangue e suor dos nativos e de corpos africanos.
É verdade que com o povoamento, com as imigrações, pessoas brancas pobres passaram a ser vítimas também dessa violência imposta por essa corrente autoritária que se estende desde o regime escravocrata até os dias atuais. Eu poderia falar muito mais coisas para este momento, mas procurarei manter uma aproximação da resenha desse livro. É que são tantas coisas que mexem com o nosso aspecto sensorial, no qual podemos sentir nas palavras de Krenak - as vozes de seus ancestrais, de nossos ancestrais - é possível sentir o choro das árvores, o sangramento dos rios, contaminados com produtos químicos de extração de minérios; a voz de Krenak não é pessoal, ela carrega o eco de seus parentes que vem lutando arduamente contra a violência das oligarquias nacionais e estrangeiras.
Um livro em questão que não pede "por favor" para que a gente pare para pensar no que está acontecendo. É um convite-urgente para que olhemos para os nossos sentidos. Será que os nossos sentidos estão sendo soterrados pela poeira do rompimento das barragens? Aliás, é disso que Krenak coloca com firmeza - o quão este modo de vida “hegemônico” vai destruindo as nossas danças, as nossas alegrias, as diversas sociabilidades dos povos – que já se misturaram, se articularam e que buscam ressignificar os seus territórios. Como citei logo no início dessa resenha: o que está em jogo é a vida do planeta Terra, a Mãe provedora dos alimentos, de tudo o que temos aqui, está nos deixando órfãos, como o livro sugere. Pense comigo, dance comigo, ritualize comigo, sensibilize comigo. Se os nossos sentidos vão sendo poluídos por dejetos industriais e pelo agronegócio, o que tem de intenção por parte dos homens do capital? Por que tanta ânsia dos agentes do capital pelo apagamento dos saberes dos povos indígenas e da cultura de matriz africana? Estamos caminhando para o fim de nossas vidas sem ao menos se pergunta o porquê desse cenário? Ailton Krenak com toda a sua profundeza diz que na verdade o projeto colonial não é contra as vidas indígenas, mas como esses corpos se portam no mundo.
É de extrema urgência que compreendamos que nesse jogo perverso do capitalismo, emerge o seguinte a alerta para além da exploração do trabalho versus o capital: é a luta pela vida. Krenak é bem objetivo, assim como aprendi com o parente Giva, indígena em contexto urbano: "como vamos pensar as lutas sociais sem a vida?" Como pensar os direitos trabalhistas, direito às terras, territórios, soberania alimentar e energética dos povos, sem as árvores, os rios, sem o ar, sem a vida? O livro é categórico: o capital está destruindo tudo aquilo que ele considera descartável, até mesmo a sua vida. Sim, você é descartável para quem só pensa a vida pela ótica do acúmulo de riquezas materiais. Estamos tossindo a poeira das grandes indústrias, a fumaça tóxica do desmatamento sem ao menos conversarmos com as árvores, com os espíritos da mata. Krenak em sua passagem na página diz:
Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos. Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática, a nossa ação, e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida, em qualquer lugar, superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos, assim como às formas de sociabilidade e de organização de uma grande parte dessa comunidade humana está excluída, que em última instância gastam toda a força da Terra para suprir a sua demanda de mercadorias, segurança e consumo. (pág. 49-50)
Ailton Krenak
Para quem não considera o sonhar como uma experiência importante para a vida, e que considera que isto é se abdicar da realidade, está confuso e não sabe, pois através dos sonhos podemos conhecer, discernir, aquilo que o cotidiano e consciência humana, esconde. A experiência onírica nos comunica e aponta o caminho pela busca da cura, dos males que encontramos nessas relações humanas. Mais do que ser uma experiência onírica, o sonho é um aspecto do conhecimento, de uma cosmovisão daquilo que em dado momento de nossas vidas, negligenciamos. A espiritualidade é a comunicação com forças e energias que se manifestam através dos sonhos e das diversas árvores, mares, rios, terras etc..
Concluo esta singela resenha do livro Ideias Para Adiar o Fim do Mundo dizendo que a luta para preservamos as nossas vidas passa para além de qualquer ideologia política. Não dá para pensarmos a preservação do solo, dos rios, das vidas, com qualquer tipo de projeto desenvolvimentista. Falar em cuidar de reversa indígena dando linha de crédito para empresas degradarem o solo e os rios dessa reserva? Se temos nos dias atuais condições de criar tecnologias de várias esferas, por que não se promove políticas públicas para que as soluções sejam de fato, condizentes com o discurso social pelo meio ambiente? Assim, ingenuidade e um suposto neutralismo, a gente sabe para onde nos leva essa inércia, não é mesmo?
O tempo, que não o linear, urge para que olhemos com coragem, carinho e responsabilidade, os frutos que somente a mãe Terra pode nos dar. Se ela chora, o Cosmos também sente essa vibração. Portanto é tempo (o biológico) de olhar para aquilo que gera as mortes em grande escala e percebermos o quão dançar, sentir, ritualizar, poetizar, cooperar, é também um modo de vida existente e possível!
Gabriel Ribeiro
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Reflexões anarquistas sobre a sociedade descentralizada.
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