Coluna de Domingo - A coragem não é apenas um substantivo

Aqui reflito sobre a importância da escuta atenta às mulheres, os desafios do patriarcado, e a interseção entre anarquismo e espiritualidade, destacando a coragem em enfrentar traumas e lutar por justiça. Coluna de Domingo - A coragem não é apenas um substantivo

Gabriel Ribeiro

9/8/20246 min read

Depois de algum bom tempo, estou de volta com a coluna de domingo, com uma energia renovada, revigorada, cheia de tesão, e sobretudo com a responsabilidade e a coragem que um corpo como o meu - colonizado - precisa ter para que o oxigênio continue a bombear não só o meu corpo, mas todas as espécies animais, das plantas, minerais e de todo solo do qual viemos. Escutar, sentir, uma voz de uma mulher, que fora violentada sexualmente, que teve a sua dignidade prejuducada, é uma experiência que sem dúvida gera em mim uma autoavaliação do meu corpo enquanto um homem branco. Mas não é isso o mais importante que quero dizer. É o lugar de escuta, que de fato, me coloca na condição de representação daquilo que essa moça sofrera e que os traumas ainda persistem em corroer toda a sua potência enquanto uma mulher. Uma mãe que sofreu abuso do pai, depois de outros homens. Ela olhar no meu olho e sentir a confiança de estar contando pela primeira vez a sua história para um outro homem.

A estrutura do patriarcado não será destruída com mera propaganda em mídia convencional. Nem mesmo a esquerda institucional está disposta a lidar com essa questão de forma honesta e reflexiva. Esta fragilidade que o homem carregou por muito tempo e ainda carrega consigo, fez com que a sua covardia se articulasse com outras covardias machistas e estabelecessem a cultura do patriarcado. Não me ouso a pontuar as questões históricas a respeito disso. Por respeito a quem pesquisa e vive mais o tema. Dentro desse encontro com a mulher, cheio de dores e também cheio de coragem, de dizer olhando no meu olho sobre os seus traumas, medos e virtudes, é um pedido de socorro. É a porra do pedido de escuta, que nós homens negligenciamos por muito tempo. A minha companheira estava presente nesse momento-desabafo da moça que ainda carrega um peso imenso de ter sofrido o que sofreu daquele que deveria ter lhe dado amor, afetos e aprendizados sobre a vida, segundo a mesma.

Não foi tranquilo escutar tudo o que escutei, evidentemente, mas não por "tomar meu tempo" mas por estar minimamente entregue ao momento em que esta mulher estava a soltar tudo aquilo que até então ela não tinha conseguido fazer, principalmente com outro homem. Os estudos que venho tendo sobre o mundo das terapias, tanto a holística quanto a da análise - ainda em fases iniciais - permitiram-me ter a coragem de olhar no olho dessa mulher, e ver o quanto a verdade dela também era aquilo que eu enquanto nome tivera que refletir. Olhar para as minhas profundezas e resgatar lá atrás as fraquezas de minha mãe, o por quê dela ter sido tão vulnerável, insegurança e des-potencializada. A mulher em questão estava ali disposta, se sentindo vulnerável por estar se expondo para mim. Era um desconforto tremendo. Eu tinha que me manter firme e escutar não só a sua voz, mas sentir a sua energia corporal.

A moça e a mulher (amigas) foram se recolher no quarto junto com as crianças e eu fiquei ainda no quintal, arrumei as coisas e não quis deitar na rede (que eu já tinha programado de colocar na sala). Arrumei tudo, tomei o meu veneno gasoso e fui para a rede na parte externa da casa. Não queria deixar passar batido o que eu recebera. Sabendo que esta é uma situação estrutural desde a invasão dos europeus, não há de passar em minhas cabeça (ainda bem) um ato de heroísmo, mas de todas e todos que estão dispostos a romper com o projeto colonial-patriarcal-capitalista dessa coisa chamado de Brasil. Inclusive, caros leitores, esta moça (pela qual não estou citando o nome por preservar a sua identidade) é descendente de indígenas aqui de uma região da Paraíba. A colonização trouxe a pólvora para nos matar mas também trouxe a violência contra as mulheres e crianças, indígenas, e quilombolas (de matriz africana) para devastarem as suas respectivas dignidades.

Eu afirmo que possuo uma parcela pequena ainda do quão o machismo influenciou-me como homem. Nós fingimos muitas vezes dar carinho sincero mas sempre pensando com a cabeça de baixo. Fomos ensinandos a objetificar o corpo de uma mulher. Confesso que quando fui-me tomando consciência dessa força política que sustenta o patriarcado, o respeito pelas mulheres fora aumentando e sendo colcando em prática. Mas a questão que me ocorre dizer por agora é o ato de coragem que uma mulher abusada sexualmente do pai, do amigo, ainda tem forças para criar o seu filho (com muito amor!) sem ajuda de ninguém, nem mesmo do pai (onde ele está?) e sobretudo, de se "expor" e colocar para fora não para o Gabriel, mas para o mundo. Esta terra a qual estamos sentados, pisando, é terra que foi muito contaminada pelos venenos do agronegócio e do garimpo ilegal, mas é uma terra que pulsa como uma força sedenta de vida, de amor e de respeito, acima de tudo. Um aspecto que não dá para encarar isoladamente. As mulheres estão em diversas frentes fazendo os seus movimentos, atos políticos, criando redes de apoio. Tem as que estão ilhadas, desencorajadas de falar. Tenho muito que aprender com essas mulheres que não querem só ficar falando de suas dores e traumas, e sim de suas atividades criativas, suas artes, suas visões de mundo - na economia, na política (em geral), no pensar o bairro, a educação, a escola, etc..

Ontem quando fiquei deitado na rede olhando para o lindo céu estrelado de João Pessoa, eu chorava não sei de quê. Talvez por deixar a minha sensibilidade atuar e me mostrar que nós homens só iremos de fato compreender as mulheres quando a gente tiver muita coragem para escutar e sobretudo, para olharmos nas profundezas de nosso corpo e enxergamos as forças femininas que carregamos dentro da gente. Conversar com um xamã, com uma força espiritual, não é racionalizar, é sentir, coisa que a colonização tirou de nós colonizados. Falei um pouco disso em meu livro "Anarquia e Espiritualidade: uma mensagem na garrafa", do quão sempre me sentia livre e potente ao falar com um médium incorporado com Preto-Velho, falando sobre a minha jornada enquanto um corpo-anarquista. Se tratando de Brasil então, o aquillombamento do anarquismo não é uma questão de imposição nem de dizer "que um seja o outro". A matriz africana e ameríndia são bem sofisticadas para saberem dialogar com o outro sem deixar as suas naturezas culturas e espirituais, de lado. Creio que o anarquismo brasileiro possa também dar este passo de não temer adentrar em certos espaços e "abandonar" o anarquismo.

Veja, novamente, não é falar sobre religião. O clero é e sempre será refutável. O projeto de poder neopentecostal-miliciano, idem. Falo de culturas e corpos que foram massacrados e torturados pela colonização. Se nas fábricas ali do início do século XX tiveram ali os anarquistas se articulando e mobilizando a classe operária para lutarem por suas dignidades, também teve gente da terra, da aldeia, do quilombo, lutando por liberdade. De novo, não estou dizendo que nós enquanto anarquistas devamos deixar de lado os pilares históricos daquilo que chamo de filosofia-prática-política (dos anarquismos). Mas sou forjado com tempero de dendê, com a erva de arruda, com a cachaça de exu, com a fumaça do caboclo, e são essas forças espirituais que irão auxiliar o meu corpo a não adoecer mentalmente. Pois acredito que a nossa consciência humana não consegue processar todas as respostas que estão dentro da gente. Sou do "Deus" de Espinoza, da profundidade que Fanon trouxe sobre o racismo estrutural, da consistência de Bakunin diante das falcatruais estruturais de um Estado, da coragem de Lima Barreto quem denunciou o autoritarismo dos militares, etc..

E quando falo do encontro que tive com esta moça, falo da expansão da consciência-corpo, da coragem da gente ser aquilo que a natureza do corpo vem pedindo ser, e não é só por um fator abstrado, mas sim fruto de uma compreensão da realidade mundana. Como cito em meu livro "Anarquia e Espiritualidade...": anarquia e a espiritualidade como pólos completamentares, e não antagônicos.

Seguirei na rota de meus ancestrais. Seguirei pela ótica anarquista pela qual a considero a mais potente para se pensar as questões urbanas. A união dos de baixo será a grande força para avançarmos. "Foram me chamar, eu estou aqui o que que há" e "Paz entre nós guerra aos senhores estão mais próximos do que a gente imagina.

Gabriel Ribeiro
À Margem