A rua ainda é um espaço de possibilidades
Este texto reflete sobre a resistência nas ruas, criticando o capitalismo e a marginalização, enquanto destaca a força dos corpos precarizados em busca de transformação social e libertária
Gabriel Ribeiro
9/9/20247 min read
De um corpo angustiado andando pelos becos do centro da cidade. De um corpo que tenta relaxar e se alimentar ao mesmo tempo durante a desumana "hora de descanso". De um corpo que trabalha no chão-fogo da rua que precisa ser reformada e que tem o banho-de-sol queimando os neurônios de sua cabeça. De um corpo que se encontra em situação de rua por conta de vários aspectos que a sociedade não está disposta a compreender. Das ruas de um padre que aplica aquilo que todo libertário admira: ação direta! Das ruas que tem corpos sendo "jogados" para as drogas, aquelas, que o homem branco rico tanto fatura com a fabricação das mesmas. Das ruas onde a resistência e a ressignificação sofisticada do corpo negro, puderam afirmar a vida com tamanha beleza. Tiveram sobretudo coragem. Aquela força motriz que vem do coração. Para alguns pode ser a manifestação intuitiva do corpo, que está em comunicação constante com os seus aspectos cósmicos. Das ruas "dos povos de rua" que tanto dão consultas a céu aberto para aqueles que estão perdidos andando sem saber a direção por onde percorrer. Das ruas dos protestos como os de Junho de 2013. Veja você, que talvez tenha medo desse marco histórico, e pense como - encruzilhadas-encontros - que se reconectaram naquele momento de rebelião social. Quem está no perrengue e se depara com uma mobilização reivindicatória, certamente sentirá em seu corpo aquela identificação sensorial pela qual origina um estímulo a mais para seguir em frente. Os que estão em situação muito precarizada, em qualquer circunstâncias, talvez possa não ter os sonhos de um militante de esquerda de classe média, mas sobretudo, este corpo ainda está vivo, observando e sentindo a realidade que te envolve.
Volto a dizer, não quero aqui ficar batendo nessa tecla da qual a esquerda partidária seja enfadonha, ela é, e honestamente não (necessariamente) por condições cognitivas de pensar a realidade e por discutir determinadas pautas, mas por aquilo que Bakunin exaustivamente esmiuçou em seus escritos: o Estado é uma estratégia política intrinsecamente corruptível. Não importa se a ideia de um parlamentar tenha sido "abençoada" por uma força divina ou algo do tipo. O parlamento tem as suas regras para que as vontades capitalistas funcionem da maneira que tem para funcionar. Do que adianta colocar um líder indígena na foto oficial do governo se as políticas voltadas para as necessidades indígenas estão "largadas" e trancadas em gavetas empoeiradas? Um Estado que investe não sei quantos milhões em política de segurança, cheio das tecnologias de monitoramento, não é capaz de mapear as ações de garimpeiros, madeireiros, ilegais, que sistematicamente vão elimimando lideranças indígenas, suas mulheres e crianças?
Do parlamento só se pode esperar notas de repúdio e de burocracias regadas a muito champagne. E infantil é quem se abdica do processo eleitoral. É por isso que tanta a direita quanto a esquerda partidária andam de mãos dadas para marginalizar cada vez mais as ruas. Como assim, você quer saber? Bom, para o capital, a rua tem que ser organizada para que os trabalhadores circulem para os seus respectivos postos de trabalho e para a locomoção de mercadorias. Para a esquerda institucional a rua só é lugar de manifestação política quando eles convocam o ato. É cansativo demais ficar falando sobre isso. Portanto sigo este artigo voltando o seu foco para as ruas, espaços esses que muitas vezes são minados pelo Estado para que determinados corpos não frequentem os mesmos. A mídia dita corporativa cumpre o seu papel de tentar aprisionar os corpos no sofá de casa. Até mesmo o maior grupo de comunicação do país expõe em seu portal de notícias, uma avalanche de manchetes sobre "desgraça" e "violência". Para quem estuda minimamente sobre a psique humana, sabe o quão nocivo pode ser essa enxurrada de notícias para o inconsciente de nossa mente. São estímulos que geram emoções pro corpo, que por sua vez geram energias e que se transformam em pensamentos. E que pensamentos são esses? O do medo, o do receio de ir para a rua, o de sentir o que está se passando nela. Não estou falando em romantizar espaços por onde a gente está correndo risco de tomar um tiro porque querem levar algum pertence pessoal. Mas sim da gente, enquanto um corpo que por mais que perceba o grau de perrengue que a nossa sociedade se encontra, ainda acredita na potência de transformação que muitos corpos precarizados podem ocasionar.
Um corpo pode estar angustiado com a vida. Tendo que resolver problemas de um lugar para o outro, com o calor do sol castigando a sua nuca. Aliás, a "culpa" não é do sol, não é? Quem desmata as florestas, polui rios, emite gás carbono em grande escala, são as megas empresas multinacionais. É um absurdo andar por ruas consideradas em regiões comerciais e não ter um projeto de jardinagem e de plantio de árvores, para que as sombras possam melhorar a caminhada das pessoas que estão ali em busca de um "lugar ao sol". O trabalhador está tendo de pegar em equipamento extremamente quente e ir para a rua abrir bueiro, buraco, para consertar aquilo que fora provocado pela bagunça do consumismo. Imgina, muito consumo, lixo. Muita sobrecarga de veículos motorizados, buracos nas pistas. É um absurdo ter que ver trabalhdor com uma carga de 10, 12 horas de trabalho, tendo que comer salgado na hora do almoço, porque não tem condições de para pagar um. O capitalismo é um dos grandes responsáveis por essa grande desorganização social. Quando se percebe essa realidade, de ver a massa trabalhadora precarizada, sobrevivendo, enquanto o capitalista está no seu "bem, bom" na orla da praia, no seu conforto de casa, como geladeira cheia, com seu plano de saúde em dia, é de gerar uma revolta completamente inflamável de dentro do corpo.
E sabe o que é doloroso, é que se um corpo desse, sistematicamente precarizado, desumanizado, se rebela contra o "sistema", ele é julgado, condenado, rechaçado coletivamente por uma classe média nojenta e hipócrita. O que conseguiu comprar o seu carro importado e ter uma casa financiada em 30 anos, vai dizer que ele também sofreu com as dificuldades e que o outro também pode se ascender economicamente na sociedade. É pura retórica tóxica de péssimo gosto. É discurso ideológico para manter os demais corpos precarizados amedrontados e cansados. Portanto, corpos medrosos e cansados, logo, vão em muitas das vezes se contentar com o que se apresenta. Só que esta apresentação não é um componente natural da sociedade, ela tem origem e vontade na esfera da política, para além da parlamentar, diga-se de passagem.
Voltando para essa angústia corporal que muitos corpos vem passando, quando eles se encontram pelas ruas, seja em qual for a situação, eles tem grandes chances de trocar informações, conhecimentos e afetos. Um passarinho muito do desobediente uma vez me contou o seguinte: rapaz, se você está triste, desesperançoso, cansado, faça um esforço de ir para a rua, respire antes de sair, leve uma água na mochila, vá procurando por sombras, não dê ouvidos para os pensamentos negativos, vá conversando consigo mesmo, com a sua espiritualidade, e a partir daí, você já começa a compor esse cenário que a sua mente ansiosa tenta fazer com que o seu medo lhe paralise. Você vai poder ver coletivos de ocupações, artísticas, por moradias, por condições dignas de vida, atuando pelas ruas, praças e passeios.
O capitalismo quer dizer para a sociedade que quem manda nas ruas são as empresas e as polícias. Isso é ledo engano e uma tática pra tirar os corpos revoltados das ruas. A rua é nossa, das prostituas, das travestis, dos trabalhadores, de quem quer estar nela e acredita que os encontros das diversidades seja o grande enriquecimento social para que as possibilidades rompam com o modo de vida padronizado - aquele pautado somente pelo consumo. Somos muitos em quantidade, embora em termos de representatividade ou de narrativas, somos a minoria. Mas nem portanto devemos "abandonar o barco por conta da tempestade" como Thomaz Morus cita em A Utopia. Creio que por mais que seja forte esse vento, ainda sim ela não há de ser a todo instante violento, e são nessas frestas aos quais o colonizador não consegue operar. Pense no seu cérebro ou o seu psíquico, como uma caixa preta, com muitos desejos e vontades ali armazenadas, consciente e inconscientemente. Não pense que o poder criativo esteja nas mãos de quem só detém os meios de produção ou muito dinheiro. De fato, eles tem a sociedade do consumo a seu favor, mas o mundo é muito maior do que as limitações capitalistas. Podemos nos integrar com as histórias dos semelhantes que também estão sofrendo com o capitalismo.
Uma tela de celular, uma conexão pela internet, uma conversa virtual, tem as suas utilidades, é evidente, e não se deve abandonar isso. O que digo é que não abondonemos as ruas. Não é fácil esse momento, de retiradas de direitos, de uma extrema direita desumana, de competição entre os nossos, mas é nas ruas é a força pulsante de um corpo se encontra com a força pulsante de outros corpos. Margear essas cidades dominadas por milícias, polícias (desculpe a redundância), por empresários ricos e por uma classe média sentinela do capitalismo, pode trazer medos, mas também é por essa margem em firmar um mundo pelo qual acreditamos, é que o coração recebe o sague genuníno de nossa ancestralidade, de todos aqueles que deram o sangue para que o mundo fosse melhor para todos.
Se onde estou talvez eu possa ser um dos poucos anarquistas transitando pelas ruas, não me abalarei, sigo as batidas de meu coração, que indica que se for pra ser preciso, serei como um fósforo em meio aos palitos, para inflamar e nutrir a revolta que habita em cada um. Não dá noite para o dia e muito menos com receitas prontas. Mas de pensar o presente como a única forma possível de se fazer vários outros mundos. O dia que eu ler Nego Bispo, falarei sobre as Confluências.
De certo, minha busca é por romper qualquer tipo de hierarquia absoluta, autoritária. Não sou contra os mestres, que ensinam, que servem à comunidade. Afirmarei a minha vida em prol de uma dinâmica mais inclusiva e libertária para toda a massa.
Gabriel Ribeiro
À Margem
Liberdade
Reflexões anarquistas sobre a sociedade descentralizada.
Conexão
Resistência
amargem.canal@gmail.com