A pele que sente, um corpo que decide

Ao ouvir o canto dos pássaros perto da minha janela, esqueço o mundo urbano. Refletindo sobre a liberdade, o cinema e o anarquismo, questiono a inércia da sociedade

Gabriel Ribeiro

9/8/20246 min read

Quero começar este artigo imaginando os pássaros que cantam, aqui pertinho da minha janela. São diversos tipos de cânticos. Uns mais suaves, outros mais graves. Até esqueço do mundo urbano em que estou. Mas logo, espio pela janela e vejo as árvores que estão na rua. Uma mangueira enorme que preserva muitas vidas que nela habitam. Vidas essas que não são capturadas pela força do serrote. Quando olho para esta robusta mangueira, imagino o quanto de tempo durou para que ela tomasse este tamanho-possibilidades. Não estou falando só de uma suposta abstração ou algo meramente poético. De fato, são elementos que ativam a corrente sanguínea do corpo. Falo também do compreender a função que um corpo tem. O de agir, o de decidir, o de chamar para si a responsabilidade de construir o seu espaço.

Me banho com as palavras que colho do livro "Conexões: Deleuze, Imagem e Pensamento", organizado por Antônio Carlos Amorim, Silvio Gallo e Wenceslao Machado de Oliveira, editora Petrus; e que a partir desse encontro, percebo um elemento bastante importante para que nós, enquanto libertários e anarquistas, possamos pensar a respeito da estrada que acreditamos ser aquela com mais possibilidades de potências para os mais "vulneráveis". O livro citado merece um artigo somente para falar de si, portanto nesse momento quero me a ter a uma provocação feita por Gregory Flaxman, no qual o autor fala sobre a perda da tomada de decisões em que a sociedade está caminhando. G. Flaxman utiliza a linguagem do cinema para demonstrar a inércia do público para com a mensagem dos filmes. Os diretores de filmes "comerciais" (aqueles que vendem milhões de bilheteria), estão cada vez mais se preocupando com a estética das cenas, se utilizando de temas "apelativos", como o do filme Avatar, de James Cameron, para impressionar os espectadores com os efeitos especiais e as tecnologias ali expostas, tendo os Na'vi como um imã de atenção. A interação do espectador com as cenas de um filme que prioriza o que está na tela, provoca uma inércia profunda em seu corpo, fazendo a sua frequência energética mental, diminuir, do ponto de vista da ação-pensamento.

No livro em questão, Gregory Flaxman discorre isto melhor do que eu. As citações de Deleuze são cirúrgicas, joga o leitor para "fora" da tela, para um devir, que não tem como negligenciar. A não ser que gostemos de estar sendo guiados por corpos-parasitas que não querem que pensemos o espaço-tempo com a liberdade daqueles que estão envolvidos nele.

Assumindo a responsa da proposição, vou continuando, deixando que o espírito de um poeta possa me ajudar naquilo que "Conexões" sugeriu: poças-escritos-pensamento, através dessa ajuda-poética fazer com que as chuvas-palavras inundam o imaginário de quem lê este artigo. Estamos olhando para as telas da vida, nos acostumando só com aquilo que a imagem está nos mostrando, ou estamos atentos com as mensagem que estão fora do campo de visão? Deleuze quando aborda a linguagem do cinema está interessado naquilo que está fora da tela. O espectador está contente em ser demasiado passivo ao se relacionar com o cinema? Antes de mais nada, é bom que se diga que em momento algum o livro citado visa "demonizar" filmes como Avatar; apenas nos convida pensar a experiência cinematrográfica com o tesão que as profundezas do corpo tem condições de produzir. Esse é o ponto que me toca diante dessa provocação a qual fui afetado. Os diretores estão interessados em vender o objeto cinemático com tudo mastigado, minando as veias sensoriais e cerebrais, enfraquecendo o seu modo de agir-decidir ou tem intenção em estimular o espectador a se engajar com o andamento da história de um filme? Existem centenas de filmes com propósitos relevantes, que discutem temas relevantes. A minha questão é trazer a partir dessa problemática que se encontra no cinema, de forma geral, para o cotidiano de cada um de nós.

A naturalização de um tipo de vida padrão vai encontrando qualquer tipo de adepto. E quem questiona isso vai sendo taxado de "ressentido" ou de "fracassado", por não ter aceitado que o seu corpo esteja aprisionado em uma jornada de trabalho extremamente rígida. Observando alguns certos tipos de espaços e de comportamentos daqueles que se dizem "alternativos" (em que algum momento tecem alguma suposta crítica ao status quo), percebo que há uma veneração pelo culto à autoimagem. Deixa eu me fazer entender. Dentro desses espaços considerados "de resistência" ou lugares "descolados", o que vejo é o diferente sendo sugado por uma homogeneização do estar-ser alguma coisa. Se você chega e tenta conversar com alguém sobre a vida, das coisas que impactam na nossa rotina, em nossa subjetividade, há um certo constrangimento. A cultura da estética é a autoafirmação do ser alternativo. Virou status também ser "o diferente". O capitalismo compreendeu que isso gera venda e consumidores. Se consome o diferente para parecer ser diferente, que mais soa como exótico. Sabe por quê? Dá trabalho conversar profundamente, de ter a coragem de expor um pensamento, uma observação. De assumir as suas contradições e trocar com o outro. Se você fala em textos, livros, filmes "cabeças", as pessoas fogem de você.

E nisso a gente pode ir observando através das redes sociais ou de um epaço alternativo, a ostentação de um modo "autônomo" de fazer a vida, desfilando a roupa rasgada, a tatuagem e a foto com a parede em ruínas de fundo. E cadê a mesma força, o mesmo ímpeto para tomar as decisões que de fato irão transformar o seu entorno? Uma jovem certa vez me indagou, "será mesmo possível uma sociedade sem Estado?". Ela me perguntou com tamanha honestidade possível. Respondi que o Estado é uma invenção política daqueles que queriam manter os seus privilégios. Logo, eles se articularam, enganaram, criaram conjuntos de fatores para cooptar os corpos que pudessem se rebelar contra os seus sofrimentos diários.

Perceba que, o meu ponto de partida é por uma ótica anarquista, comprometida em romper com algum tipo de autoritarismo. E quando me deparo com a belíssima reflexão do livro "Conexões", ao apontar a inércia pela qual muitas pessoas em nossa sociedade estão indo, essa provocação fez ressoar em mim por conta daquilo que venho observando em meus encontros pessoais. E "não venha" você pensar que isto seja um problema só de um "alternativo sem identidade", pois vi de perto "anarquista" reproduzindo com muita audácia, o modo de vida padrão. Inclusive, ele é um que se utilizou do anarquismo para mostrar a sua "diferença" e agir como um "burguês não-convicto". Senti falta de uma mobilização, de um pensar-fazer-poesia, de agir muito próximo de seu discurso. Falo assim pois também tenho as minhas contradições. Esse não é o ponto. A mim o que incomoda profundamente é o medo (sem moralismo), a inércia, diante de uma sociedade cada vez mais autoritária. No Rio de Janeiro tem comunidade que já proíbe o terreiro de macumba de funcionar. Tem espaço de luta que já proíbe um grupo de "radicais" de se manifestarem. E por aí vai. É a liberdade de cátedra (assegurada pelo CF de 88) que os liberais reacionários tentam rasgar.

O pensar-agir é movimento corporal que a gente vai aprendendo ao logo de nossa existência. Vamos escutando inconscientemente os sons, as falas e, vendo as imagens criadas desde a nossa primeira parte da vida. O espaço, as palavras-pensamentos, foram sendo construídas através das culturas e necessidades. O "diretor" do filme da vida quer centralizar a sua atenção para que ele possa chegar com o objeto mastigadinho sem que você possa se preocupar em pensar, se interessar no engajamento da mensagem em questão, assim como acontece em nosso cotidiano cujo os senadores, deputados, juízes, promotores, seja o que for, visam manter um certo tipo de enredo pelo qual eles dão as cartas, você escolhe, mas não decide, percebe?

Na linguagem cinemática que serviu de base para este artigo faz exatamente isso: convida o espectador a ver um filme cheio de efeitos especiais, repleto de avanços tecnológicos, gerando um interação meramente imagética, mas não estimula que o seu corpo possa sair do que está óbvio e penetrar no terreno do pensar-construir. Quando Ana Cristina César escreve, para que as "poças-escritos-pensamentos" não sequem, interpreto como um alerta para que não deixemos as gotas-palavras se tornarem instrumentos meramente ilustrativos, sem o poder de ação.

Gabriel Ribeiro
À Margem