A excitação de uma massa que inflama para queimar o marasmo do autoritarismo

O texto: A excitação de uma massa que inflama para queimar o marasmo do autoritarismo explora a resistência humana e a luta por liberdade em um contexto de opressão colonial. A figura de Batuque, um menino-moleque, simboliza a vitalidade e a criatividade de uma comunidade diversa, composta por indígenas, camponeses e imigrantes, diante da tirania. Água Ardente, uma mulher mística, representa a transformação e a espiritualidade como forças de resistência. A narrativa destaca a importância da memória ancestral e da união na busca por dignidade, questionando as narrativas dominantes e promovendo uma reflexão sobre a existência dos insurgentes

Gabriel Ribeiro

9/29/20246 min read

A humanidade é um fenômeno sociocultural no espaço-tempo que produziu uma enxurrada de coisas. Tem na psique algo a ser desvendado. Dizem que a consciência é aquilo que a gente sabe que sabe. Da inconsciente um pelo qual agimos talvez sem a noção do que estamos fazendo. A psique produz uma infinitude de associações e possibilidades. Aqui vou querer falar sobre um lugar que vibra na esfera da excitação, que atinge as mais quentes estrelas do universo, faz a lua se mexer. Surge a criação de um objeto-corpo-espírito chamado Batuque, um ser indefinido e intransponível. Algumas testemunhas dizem que essa criatura nasce através de um ambiente completamento rígido, com bastante escassez de sossego e de liberdade. Batuque certamente vivia com essa comunidade. Ele precisava se vestir, obter uma referência estética, para conseguir se comunicar com aqueles semelhantes que iam sendo constituídos. Era como se fosse uma força energética que irradiava não só luz perante os que sofriam às violências dos malfeitores. Fui tentando compreender mais sobre essa existência que não possuia uma identidade definida, muito embora, ela traçava características pra lá de rebelde, sempre contrária a qualquer tipo de tirania.

Batuque em dado momento aparecia como um menino-moleque cheio de apetite. Um sorriso instigantemente travesso. Em seu povoado, cujo os “seus” trabalhavam em carga horária desumana, o garoto pegava uma cesta com frutos que apanhava na floresta ao redor, e entregava para alguns sentinelas do Coronel. Esse Vilarejo parecia tudo “mil maravilhas” para a grande maioria que ali vivia. O poder de manipulação dos militares eram imensos. O poder de persuasão tinha nome: a pólvora. Diziam que um grande “dono” de pedaço de terra traria muita abundância para aquela comunidade. Batuque possuia uma força que a conseguia transforma-lá em uma doce mulher, que andava com uma rosa na mão. O homem grosseiro que chegava para a incomodar, sentia o espeto do espinho dessa flor. Essa misteriosa mulher, muito serena e responsável, buscava ter compaixão com os camponeses-escravos que viviam nessa região, chamada de Recanto das Àguas. Diante desse cenário que mesclava as belezas naturais e as imposições dos brancos malfeitores, a mudança de ambiente evidentemente era percebida por Batuque e outros membros da comunidade. O menino-moleque gostava de entrar sozinho na sala do Coronel para colocar um monte de galhos finos (tipo papel), pelo chão do espaço. O Coronel que ali adentrava afobado, inseguro e agitado, por conta das missões que recebia de uma Ordem Central, externa, pisava nos espinhos e gritava feito um apito desafinado e chorava com uma raiva que o deixava vermelho-sangue. Aliás, o líquido dos sangues daqueles que eram severamente torturados e assassinados por descumprirem o recado-tirânico, iam para debaixo da terra. Os sentinelas capitães do mato davam ordem para limpar as sujeiras dos sangues que ficavam espalhados no chão e jogar nas águas dos rios que banhavam a região. Batuque e os corajosos, cientes do projeto de poder que se consumia naquele povoado, organizavam uma tática de levar as águas vermelhas de seus semelhantes para um outro lugar que não fosse os rios. O local escolhido para armazenar os sangues ancestrais, era as matas e os caminhos que os camponeses-escravos percorriam massantemente todos os dias. O sangue ficava debaxio da terra para que a mesma recebesse nutrientes e a energia da fertilidade, para que essas forças se tornassem espíritos, e ressoar em todo corpo-matéria que fosse continuar o processo de (re)exsistência aqui na terra. O nome da mulher-misteriosa que vinha de Batuque, se chamava Água Ardente – aquela que aquecia e acolhia, guerreiros e guerreiras, quando os mesmos a solicitavam; e queimava a paz daqueles que cometiam humilhações e violências aos demais.

A região do Recanto das Àguas pertencia desde muito tempo a uma gama cultura etnica muito diversificada. Viviam indígenas e camponeses que foram povoando aquela terra com muita compreensão de que o trabalho cooperativo seria a melhor forma de lidar com a constituição daquele território e todo o cuidado com o próprio bioma. Batuque começou a escrever com o seu galho, no chão de terra, um convite-encontro no meio da madrugada, para que os incomodados pudessem conversar com mais tranquilidade e profundidade sobre o cenário presente do Vilarejo.

Antes da chegada desses homens brancos armados até os dentes no qual se confundia os talheres com os fuzis, a região localizada entra a América do Sul e o continente africano, era povoada por etnias indígenas, camponeses (oriundos de imigrantes europeus que fugiam do fascismo) e por negros vindo da África. Os militares e os imperadores tinham medo de andar à noite pela mata. Se tremiam todos quando passavam pela árvore da jurema. Portanto, dependiam da companhia de escravos para iluminar o caminho e protegê-los. Só que tudo que era feito naquele contexto, tinha um caráter muito bem calculista por parte da comunidade. Se de um lado a pólvora era o poder de persuasão, do outro, a questão psíquico-espiritual, alimentava a cosmovisão dos moradores de Recanto das Águas. Nesse lugar uma liderança camponesa, conhecida como Riacho, aplicava todos os seus saberes ancestrais a serviço de seus semelhantes – e esses, não eram somente os que daquela terra nasciam, mas todos e todas que iam constituindo um espírito libertário dentro de si. Riacho se tornou uma liderança de Recanto das Águas devido a seu acúmulo de experiência, acarretando um processo natural para que a comunidade percebesse. Nenhuma decisão era monocrática, todas as medidas, passava por uma assembléia com membros dessa região e de outras próximas.

Veja que instigante um detalhe, ao mesmo tempo que o homem branco europeu chegara com a sua força bruta e impunha um regime feudal-escravocrata – com a premissa de apagamento simbólico-cultural daquele povo – os camponeses, forjados por nativos, africanos e imigrantes, burlavam todo tipo de lei autoritária, para traçar a retomada das terras e de suas respectivas dignidades. Com os saberes-frutos da cosmovisão inserida em suas microrrelações: saber da mata, da matriz africana, do plantio e das práticas libertárias dos imigrantes, esse caldeirão recebia o fogo ardente vindo das lenhas das matas, e portanto, toda essa comunidade resistente, passou a desenvolver técnicas sofisticadas de comunicação entre si. Os conhecimentos não podiam deixar nenhum tipo de rastro impresso, fazendo com que os ensinamentos dos mais velhos para os mais novos, fossem realizados verbalmente, durante os encontros-rituais que eles promoviam secretamente.

E num dado momento, essa excitação já estava transbordando de tanta vontade por uma associação comunitária repleta de liberdade. Riacho com um olhar profundo, recebia uma certa admiração até mesmo dos colonos, por saberem que o experiente morador, conhecere os atalhos de todo o ambiente. Mas tamanha a soberba dos tiranos, achando que os “nativos” não tinha poder estratégico nem de tática, se perderam nas suas próprias arrogâncias, medos e inseguranças. Aquele que força um trono, impõe uma ordem para outrem, sempre haverá de existir com essas angústias e medos, de perder aquilo que tenta conservar. Os imigrantes pobres, que viam fugidos do fascismo europeu, puderam também agregar com suas práticas e teorias, para a Revolução dos Povos. Um italiano propunha uma indagação junto aos saberes indígenas: porquê que um grupo minoritário ousa querer ser dono de algo que é público, universal, que constitui a própria terra-natural?

As águas profundas dos rios percorriam mares e oceanos, cujo as correntezas encontravam outros povos famintos por autonomia, liberdade e abundância. Os ventos de Recanto das Águas, sopravam as nuvens para levá-las à regiões que sofrera também com o fardo da carabina, e que tais nuvens, faziam chover palavras-escritos, para alimentar a alma de cada corpo humilhado por alguma força autoritária.

Batuque conseguia armazenar energéticamente todas essas produções humanitárias, e quando o tambor manifestava o seu som, os espíritos subversivos-libertários, eram invocados para as rodas de conversas, debates, assembléias e em qualquer momento de puro massacre que algum trabalhador ou escravo sofria.

Creio que um dos papéis revolucionários, é perceber que há um rio muito maior do que a matéria possa nos conceber, e que há um rio chamado de Humanidade pelo qual o espaço-tempo não se dá por um aspecto linear. Isso significa dizer que para além dos recursos concretos que os revolucionários e todo corpo saturado de tanta tirania, ocorre também registrar a faculdade psíquica como uma ferramenta potencialmente transformadora de mundos. Estabelecer uma relação honesta com qualquer figura autoritária ou fascista, está longe de ser uma ação-ética. A mentira pode vir a ser uma arte quando ela é criada de um corpo-escravo, de um corpo-precarizado, por conta de trabalhos excessivos, para com os patrões e malfeitores. Leia-se aqui ser sonso com qualquer corpo-oco autoritário. Entre os que sofrem, que estão na labuta, há de ter cautela e sagacidade para com a sinceridade, pois muitos trabalhadores estão contanimados e em dadas circunstâncias, soam como defensores de um modo de vida cruel, excludente, consumista e colonialista.

O mesmo cheiro sexual que sai de uma cama bagunçada, é o mesmo aroma que a busca pela liberdade emana, seja em qualquer lugar que for dessa planeta terra. As ideias-espíritos percorrem por rios, que quando envenenados ou aterrados por empresas extrativistas, elas evaporam e ganham contornos de ares, sussurrando no corpo de qualquer indivíduo marginalizado, condenado pelo eurocentrismo, que habita nas colônias.

Gabriel Ribeiro
À Margem